segunda-feira, 29 de junho de 2009

O leitor como leitor de si mesmo

Cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo
Proust

Por Julia Pastore



A relação entre leitor e livro traz inquietantes questões ao pensamento. Seria o livro realmente uma unidade orgânica auto-suficiente, distanciado de sua produção e de sua recepção, como afirmavam os New Critics americanos? Há então de se banir o leitor, ou será que o acesso imediato à obra é impossível e a operação de escrever implica a de ler como seu correlato dialético, como afirmaram Proust e Sartre respectivamente?

Há entre livro e leitor um jogo em que os papéis se revezam e complementam. Por um lado, o livro arremessa, sem piedade, o leitor nas questões iluminadas pelo texto. Por outro, também, impiedosamente, o leitor recria o texto como o lado de fora de sua interioridade anímica. São então, livro e leitor, algoz e vítima, na medida em que o primeiro, por mais desatento que seja o leitor, promove sim, no mínimo, um "desconforto" que toca, ainda que levemente, as obscuridades de quem lê.

Nessa perspectiva, pode-se dizer então que, embora não haja um leitor onisciente, devido à limitação das faculdades interpretativas, por mais que não se curve à expectativa do texto, o leitor se curva plenamente àquilo que consegue tocá-lo e isso é grandioso. Entretanto, não se trata de reduzir à obra literária à subjetividade do leitor. Cada leitura vai desvelando múltiplos significados que não são estanques, nem verdades absolutas. Por isso, ainda que lida e relida, claro é que a obra manterá sempre o mistério, como um enigma cuja resposta é a repetição do próprio enigma e o leitor o atualiza sem que isso signifique um esgotamento.

A idéia de um leitor que pudesse transformar em ato toda a potência do texto é inclusive, um pouco esdrúxula, pois a Literatura é como o homem e o real: abismo sobre o qual só se podem construir diáfanas pontes que, em seguida, desmancharão no ar. A Literatura é o mundo e assim, é tão ignoscível quanto ele. Embora sua forma seja milimetricamente calculada, a enxurrada de símbolos que traz consigo configura um caleidoscópio cujas perspectivas são infinitas. Portanto, a idéia de uma "leitura fechada" (close reading), objetiva, que faz do texto um sistema fechado e estável, empobrece a literatura, veta a relação profícua de diálogo entre leitor e texto (e leitor e leitor, e texto e texto), que possibilita a instauração de mundos subjetivos, inter-subjeitvos e objetivos. A ilusão afetiva de que falavam os New Critics não é "uma confusão" e sim mais uma das possibilidades oferecidas pelo texto. A má compreensão e as falhas de leitura, ruídos e brumas, fazem parte não só da relação leitor-texto, mas da relação homem e mundo. A cada contato com a obra, o leitor a experiencia de forma diferente, vai, aos poucos, saindo de seus limites iniciais quanto à interpretação, se transforma e transforma a obra, atingindo níveis mais complexos de interpretação.

Nessa perspectiva, a fala de Proust: "Cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo", é primorosa. E a crítica feita a ele por Lanson, de que as reações dos leitores não são tão singulares e inclassificáveis, é também passível de crítica. As reações dos leitores não são tão singulares, pois todos nós somos atravessados pelas mesmas questões. Vida, morte, amor, cisões da consciência, tudo isso, faz parte do sentido do ser e reverbera dentro de todos. Assim, embora ainda haja a forma do poema ou da narrativa, a qual nem todos têm acesso, pois requer um instrumental teórico para ser interpretada, as questões que são descortinadas por eles brilham para todos em certa medida.

De fato, não há acesso puro ao livro e será que deveria haver? Será que tal "acesso puro" não esmagaria o silêncio que atravessa as palavras, que está entre elas? Não estaria esmagada a relação entre o dizer e o não-dizer? A relação com as múltiplas formações discursivas nos mostra que não há coincidência entre a ordem do discurso e a ordem das coisas e uma idéia de verdade ou de transmissão de experiências é incoerente. Caberia então a idéia de um leitor modelo, que fizesse a leitura correta da obra?

Segundo Schopenhauer, a vida é uma síntese de representações enganosas, Nietzsche sugere que o homem se esvazie dessas representações, elevando o pensar a um gesto estético e artístico, liberto das metáforas esvaziadas de sentido. Seria coerente, então, a idéia de um leitor onisciente, que pudesse decodificar perfeita e objetivamente o cunho do texto? Se o mundo toma forma através de nós para se olhar no espelho, se cada um de nós dá referência para a totalidade, como acreditava Schopenhauer, como excluir o leitor, da dinâmica fundamental da obra de arte? Impossível. Como disse Sartre: "O objeto literário é um estranho pião que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é preciso um ato concreto que se chama leitura e ele só dura enquanto essa leitura puder durar."

BIBLIOGRAFIA:

AGAMBEM, Giorgio. 1942- ESTÂNCIAS – A PALAVRA E O FANTASMA NA CULTURA OCIDENTAL. BELO HORIZONTE: EDITORA UFMG

CAMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria. Belo Horizonte: UFMG, 2003

DELEUZE, Gilles E GUATTARI, Felix. Mil Platos. Capitalismo e Esquizofrenia, VOLS 1 E 2. RIO DE JANEIRO: EDITORA 34, 1995.

NIETZSCHE. Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extra-Moral.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio no Movimento dos Sentidos. Campinas: UNICAMP, SP,1995

SCHOPENHAUER. O Mundo como Vontade e Representação.

Um comentário:

  1. Muito bom, Julia, excelente. É por isso que continuamos a ler e reler, e os mistérios literários, os silêncios, continuam e continuarão a nos assombrar, a nos embasbacar, a nos "arremeçar", como você disse, para lugares imprevisíveis. Perfeito!

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