Com base na leitura do conto “O Rapaz Mais Triste do Mundo” (em Os Dragões não Conhecem o Paraíso. ABREU, Caio Fernando. 1988) cria-se a base do estudo que se fará. Da mesma maneira que um homem ou uma mulher homossexual pode emocionar-se com uma história de amor, uma situação cômica, uma narrativa trágica ou o que mais for vivida e escrita por algum homem ou mulher heterossexual, um homem ou uma mulher heterossexual podem emocionar-se com a literatura – ou qualquer outra arte, mesmo a vida real – vivida e escrita por algum homem ou mulher homossexual. A própria narrativa do conto lido, mesmo contando a história de dois seres do mesmo sexo – um homem de quarenta anos já desiludido com sua vida e um rapaz de menos de vinte, perdido com a sua – mostra sentimentos genuinamente humanos, independente de sua sexualidade. Solidão, melancolia, tentativas desesperadas por um pouco de distração, tentativas desesperadas por alguma companhia, confusão, ternura. É perfeitamente possível uma adaptação deste conto, tornando um de seus personagens do sexo feminino, sem alteração na emoção que causa, mas isso não é necessário. Da mesma forma que os homossexuais não precisam de adaptações de histórias heterossexuais para se emocionarem e reconhecerem mais, o oposto também não é preciso. Homossexuais e heterossexuais, todos nos reconhecemos como seres humanos. Todos somos rapazes de vinte anos confusos quanto ao seu futuro e homens de quarenta anos desiludidos graças ao passado. E todos também somos o voyeur ao lado do jukebox que observa e não está triste nem confuso, apenas quer saber o que virá a seguir. Há este personagem narrando o conto, o homem que observa e imagina a cena ao lado do jukebox do bar em que os homens se encontram, e ele realiza com os outros personagens a dicotomia da ilusão e desilusão. Ele representa, também, a alma humana. É ciente de que ele não é apenas ele. Ele é o rapaz de vinte anos, o homem de quarenta, ele mesmo que observa, e ele mesmo que inventa o que não é capaz de saber, além de ser o próprio leitor. Somos todos eles, e tal conclusão é feita pelo próprio narrador.
Não se busca na literatura homossexual atual, muito bem representada por Caio Fernando Abreu, um abrigo para um nicho social excluído. Busca-se apenas a arte, feita com a sinceridade de seu artista. Seriam os artistas homossexuais que se inspiram neste ponto de suas vidas para realizar suas artes capazes de fazer tão bem o que fazem se estivessem preocupados em ocultar a homossexualidade de seus personagens e histórias atrás de metáforas ou até mesmo transfigurá-las em heterossexualidade? Para que eles precisariam fazê-lo, afinal de contas? Evitar um choque, talvez? Mas não seriam necessários choques para que aqueles que vêem a homossexualidade como anormal passem a vê-la como normal? Não apenas artística, para entretenimento, a literatura e a arte homossexual teria também um papel social? Seus artistas são conscientes disso ou tal papel social acaba surgindo por acaso? A cada artista, portanto, cabe uma resposta. Afinal, da mesma maneira que nem todos os praticantes de determinada religião se preocupam em torná-la reconhecida e respeitada, nem todos geradores da arte homossexual precisam preocupar-se em fazer militância pelo fim do preconceito. Pode-se até ser mais eficaz para a luta pelo fim do preconceito a ausência de militância de alguns artistas, como, por exemplo, Caio Fernando Abreu, que se preocupa em explicar a sexualidade de seus personagens. Eles apenas são o que são.
No conto a seguir, “Sogra” (WILBERT, Renan. 2009), a homossexualidade dos personagens centrais torna-se mero detalhe em meio a toda a situação a qual eles são expostos, a qual até mesmo os heterossexuais poderiam ser expostos. O nervosismo do primeiro encontro com a sogra é compartilhado tanto pelos leitores homossexuais quanto pelos leitores heterossexuais.
Minhas mãos estão geladas e tremem no volante enquanto eu espero. Não quero tocar a buzina de novo, apesar da demora deles em sair de casa. Tenho que ser nada menos que perfeito esta noite. Afinal, mais difícil que conquistar Henrique para além daquela noite até me tornar seu namorado será conquistar dona Mariana, a mãe dele. Toda a novidade do momento me aterroriza e também, de certa forma, me alegra. Nunca antes nenhum de meus namorados me apresentou à mãe oficialmente. Tudo parece estar ficando mais sério agora, de uma maneira muito boa.
A naturalidade desaparece no instante em que dona Mariana entra no meu carro. Não sei se devo cumprimentar Henrique com um beijo, como de costume – opto por apenas abraçá-lo. Um denso silencio ocupa todo o espaço do carro, então, e eu sinto o suor brotando em minha testa. É indecifrável o rosto de dona Mariana, e sinto vergonha de procurar algum amparo nos olhos de Henrique. Não digo nada, com medo das palavras saírem erradas ou de gaguejar e denunciar todo o meu nervosismo. E se ela não gostar de mim? O que ela pode falar para Henrique? Qual deve ser o tamanho da influência dela sobre o filho? O suficiente para abalar ou acabar com a nossa história? Começo a achar que não foi uma boa idéia preparar este encontro agora.
Música? Henrique pergunta e não espera a resposta para ligar o rádio. Ele abre o porta-luvas e procura um dos CDs que ele gosta, tentando se desligar daquele momento constrangedor. Eu sei que ele quer a perfeição deste dia também quando ele finge indiferença ao passar pelos discos de música pop. Certamente, não quer que sua mãe pense que somos aquele tipo óbvio de homossexual. Ouvimos, então, um rock nacional, e Henrique se segura com força na melodia. Eu não consigo. Procuro, através do espelho retrovisor, a atual expressão de dona Mariana. Ela está me olhando. Eu congelo, e passo cada segundo do restante do trajeto até o restaurante tentando decifrar, em vão, qualquer sinal de aprovação ou reprovação na falta de atos dela.
Poucas palavras são trocadas no restaurante, antes da chegada do garçom. Para evitar o risco de errar, deixo que ela e Henrique escolham o prato e o vinho. Lanço, finalmente, um primeiro olhar para meu namorado, perguntando em silêncio Ela é sempre assim?, e recebendo um olhar de resposta que tenta dizer Fique tranqüilo, tudo vai dar certo., mas acaba dizendo Estou mais nervoso que você. Dona Mariana só fala quando o garçom serve o vinho tinto e deixa a mesa.
E então... A cada letra dita eu me sinto recebendo uma forte corrente de ar glacial. Como vocês se conheceram? Impossível sentir qualquer tom de simpatia ou de desprezo naquela voz. A neutralidade me tira o norte.
Por acaso. Consigo não gaguejar. Ótimo. Decido não mentir. Numa boate. Trocamos telefones, e-mail, conversamos...
E é sério? Ela me corta para expulsar a pergunta entalada em sua garganta. O que eu
quero saber com isso é se você realmente gosta do meu filho.
Eu fico corado e não consigo tirar os olhos das minhas mãos, com medo do que eu possa encontrar além delas. A resposta, tímida, sai. Gosto. Mais leve por ter dito aquilo, consigo levantar o olhar e encarar dona Mariana. Muito. Sinto a palma da mão de Henrique carinhosamente repousando em meu braço.
Dona Mariana me olha de volta. Desta vez eu não desvio o meu olhar e acarinho a mão de Henrique com a minha. Ela olha para o filho e vê seu sorriso. Ela, enfim, sorri. Eu sorrio. Sei, afinal, que sou o que dona Mariana queria. Ela coloca sua mão leve sobre as nossas. Sua voz agora tem o calor de um abraço.
Que bom.
Voltando ao conto de Caio Fernando Abreu, a situação vivida entre os personagens do homem de quarenta anos e o rapaz de vinte, um encontro por acaso em um bar, ambos levemente alcoolizados e bastante sozinhos, em que um sabe que não é, de fato, alvo do interesse do outro, mas sim apenas alguém que melhor se encaixa ao outro naquela situação, é verossímil e humano o suficiente para que qualquer leitor se identifique. Outros fatores também apresentam grande carga de humanidade, como o estágio da vida em que o rapaz de vinte anos se encontra, deixando a adolescência e entrando na vida adulta, sem muitas esperanças, com uma sensação de fraqueza contrapondo-se a uma arrogância, além da típica falta de experiência que gera todos os outros elementos já citados. O homem de quarenta anos, por sua vez, acaba representando a experiência e aconselha o jovem, apesar de toda a sua desilusão. Unem-se os dois numa mesma figura, a do par formado por eles, a juventude e a experiência, sendo esse um dos fatores que gera toda a ternura e troca de carícias entre eles. São, como todos os leitores, humanos.
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Conto “O Rapaz mais Triste do Mundo” está disponível no endereço:
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Por
Renan Wilbert Mendes
DRE: 108057311
Muito bacana, Renan, seu texto, bem escrito, articulando ideias e questões interessantes, com um tom próprio que demonstra a preocupação teórica prévia sobre o tema. Há várias questões pertinentes levantadas, questões para as quais não há respostas certas, em especial a relação da homossexualidade com a arte, em geral, e a literatura, em particular. O que pode ser uma literatura homossexual?, é a grande questão aqui, a meu ver. Esse adjetivo, "homossexual", implica num gênero diferenciado ou é um contexto histórico, social, cultural que não faz parte da "matéria poética" em si (o que suscita a questão de o que é essa matéria poética). Enfim, o fato de o Caio Fernando Abreu ter sido ou não um homossexual assumido intefere de maneira decisiva no entendimento, na análise e, por que não, na recepção (na leitura!) de sua obra? Claro que encontraremos diferentes respostas para essas questões. O importante, creio, é não ficar aprisionado nessa questão em particular, mas deixar que ela movimente pelas indagações importantes que vão surgindo em nossa vida. Parebéns pelo texto. Boas férias e um abraço.
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