"A aventura pode ser louca, mas
o aventureiro tem que ser lúcido."
(Chesterton)
(Chesterton)
No decorrer do curso de Teoria Literária III, ministrado pelo professor Caio Meira, deparei-me com inúmeros temas que pretendia discorrer neste blog, mas ao refletir sobre o leitor, de acordo com a abordagem de Antoine Compagnon, estando a minha mente ainda imersa na dualidade da arte consequência fatal da dualidade do homem moderno, num diálogo com Charles Baudelaire; percebi a necessidade de trazer a tona alguns dados que levaram-me a pensar sobre a questão da leitura e da formação do leitor brasileiro.
Antes de aventurar-me no universo esplendoroso que cerca o leitor junto com Antoine Compagnon, convido aqueles que venceram a falta de incentivo à leitura e as inúmeras falhas no sistema educacional - elementos que conspiram para tornar o hábito da leitura impopular - a embarcar nessa reflexão sem pretensões, no desejo de juntos nos inquietarmos. E até, quem sabe, desenvolver instrumentos que possibilitem uma mudança nesse cenário de desinteresse pela leitura, tão evidente na atualidade.
Torna-se uma tarefa difícil falar sobre a função do leitor, num país que tem cerca de 77 milhões de não-leitores1, independente dos motivos que estão relacionados a esse dado, todos são oriundos das multiplas expressões da questão social no Brasil, e englobam fatores como baixa renda, escolaridade precária, o altíssimo custo das obras e ainda a falta de oportunidades de forma geral. É alarmente o índice de analfabetos funcionais, e inaceitável que a origem não se restrinja à da falta de oportunidade de estudar, mas que persista após a atuação dos instrumentos de capacitação – que, em teoria, deveriam mitigar o problema. Falo sobre os 25 mil alunos da rede pública municipal carioca que cursavam em 2008 o 4º, o 5° e o 6º ano2. Destes, 36% - 9 mil jovens - continuam excluídos do entendimento das palavras, embora a conquista do diploma municipal presuma que a fase alfabetizatória tenha sido superada há anos. O quadro se torna mais tenebroso ao constatarmos que agora em 2009 temos ainda 90 mil matriculados no 6º ano nesta mesma estrutura educacional. Mantendo-se o percentual de analfabetos funcionais detectado em 2008, teríamos 32.400 jovens nestas condições ao fim deste ano. Em dois anos são cerca de 40 mil cariocas despreparados para o entendimento da escrita, mesmo passando por séries avançadas do ensino fundamental. Lembrando que entre os 27 estados da federação há alguns com renda infinitamente menor que a da cidade maravilhosa, e com orçamentos ainda mais apertados para educação pública, como falar de formação do público leitor? E da existência do leitor, seu relacionamento com a palavra escrita, e por conseguinte com o encanto da literatura? Em que condições?
O que acontece com o papel do LEITOR ; se estamos formando cidadãos que não sabem ler? Que desde de seus primeiros passos desconhecem o prazer que a leitura pode proporcionar a seus praticantes, levando-os a outras "dimensões" muitas vezes inacessíveis dentro de suas realidades, que não se limitam aos seu pequenino espaço geográfico. Em que a obra foge das mãos de seu autor, para cair nos braços de leitores, que aos poucos vão se misturando a ela (Prost), dentro de uma incessante liberdade concedida ao leitor pelo texto, na construção do conhecimento, onde cada leitor, de acordo com seu arcabouço teórico, ou melhor dizendo, as experiências adquiridas, vai preenchendo as lacunas de cada texto. Cada um de sua forma, em seu tempo, apreendendo e aplicando o que lê a sua própria vida.
O leitor a partir do ato de ler, que dá movimento e vida a literatura, aceita o desafio, que o compete, de desvendar um conjunto de enigmas que o texto apresenta, por intermédio da interação entre o texto e ele mesmo produto da própria leitura.
Segundo Sartre, "o objeto literário é um estranho pião que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é preciso um ato concreto que se chama leitura e ele só dura enquanto essa leitura puder durar". Ou seja, um livro na estante aspira ser literário, mas só o é com a leitura, com a existência de leitores. "O objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor."
"A leitura garante uma significação totalizante à nossa experiência." E essa experiência da leitura, como afirma Proust, permite que o leitor vá para o texto com suas próprias normas e valores adquiridas por outras leituras, o que a partir de acontecimentos imprevistos no decorrer da leitura, poderá obrigá-lo a reformular suas expectativas e a reinterpretar o que já havia lido.
Aprendi que a memória que o leitor tem de um livro representa na verdade a experiência que ele adquiriu com a leitura daquela obra, onde cada leitor nada mais é do que um leitor de si mesmo, de acordo com a sua visão de mundo, que se constrói com a leitura. Na verdade, "o leitor é livre, maior, independente: seu objetivo é menos compreender o livro do que compreender a si mesmo através do livro; aliás, ele não pode compreender um livro se não se compreender ele próprio graças a esse livro." (Antoine Compagnon)
Concordo com a tese de Umberto Eco, para quem toda obra de arte é aberta a um leque ilimitado de leituras possíveis, ou ainda com a tese de Michel Charles, para quem a obra atual não tem maior peso do que a infinidade das obras virtuais que sua leitura sugere. O que mais uma vez, comprova que a literatura não deve configurar como um objeto, mas sim "o que acontece quando lemos".
Mencionaria ainda em tempo, a desconstrução propiciada pelo Formalistas, em que toda a hierarquia na estrutura que une autor, texto e leitor, funde-os simultaneamente.
Precisamos ter consciência que o embate entre o leitor e o texto não pode mais tardar em acontecer, no intuito que cada leitor faça uma leitura de si mesmo, de sua sociedade, e até quem sabe, reflita em relação ao caminho que percorremos. Não podemos continuar tendo nas estatísticas editoriais de livros mais lidos, os de alto ajuda e os religiosos, como fugas à complexidade da vida, que inclusive chegam a ser oferecidos em revistas como a da Avon. Já é tempo do povo brasileiro conhecer a leitura como fonte de prazer.
Fica como exemplo de resistência daqueles que insistem em ir muito além da malha fina do sistema educacional o site estantevirtual (www.estantevirtual.com.br), que vem crescendo dia após dia, servindo de instrumento para os amantes da leitura.
Faço minhas as últimas linhas do texto "O leitor" de Antoine Compagnon, "a experiência da leitura, como toda experiência humana, é fatalmente uma experiência dual, ambígua, dividida: entre compreender e amar, entre a filosofia e a alegoria, entre a liberdade e a imposição, entre a atenção ao outro e a preocupação consigo mesmo"; o que nos permite uma breve viagem a dualidade presente nas obras baudelairianas, que retratam uma beleza passageira e fugaz da vida moderna; aproprio-me das palavras de Baudelaire, presentes em seu texto "O pintor da vida moderna" ao tratar desse enigmático poeta, cujos escritos frequentemente estranhos, violentos e excessivos, mas sempre poéticos e envolventes, muito bem concentram o sabor amargo ou capitoso do vinho da vida, como em seu poema "Enivrez-vous" (Embriague-se).
Faço minhas as últimas linhas do texto "O leitor" de Antoine Compagnon, "a experiência da leitura, como toda experiência humana, é fatalmente uma experiência dual, ambígua, dividida: entre compreender e amar, entre a filosofia e a alegoria, entre a liberdade e a imposição, entre a atenção ao outro e a preocupação consigo mesmo"; o que nos permite uma breve viagem a dualidade presente nas obras baudelairianas, que retratam uma beleza passageira e fugaz da vida moderna; aproprio-me das palavras de Baudelaire, presentes em seu texto "O pintor da vida moderna" ao tratar desse enigmático poeta, cujos escritos frequentemente estranhos, violentos e excessivos, mas sempre poéticos e envolventes, muito bem concentram o sabor amargo ou capitoso do vinho da vida, como em seu poema "Enivrez-vous" (Embriague-se).
Enivrez-vous
Il faul être toujours ivre. Tout est lá: c'est l' unique question. Pour ne pas sentir l' horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d' un palais, sur l' herbe verte d' un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous reveillez, l' ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, á la vague, á l' étoile, á l'oiseau, á l' horloge, á tout ce qui fuit, á tout ce qui gémit, á tout ce qui roule, á tout ce qui change, á tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, n' être, l' oiseau, l' horloge, vous repondront: <<>
(BAULELAIRE, Charles. Petits Poèmes en Prose. In: Oeuvres
Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p. 197)
Obs.: A tradução desse poema encontra-se neste blog.
Referência Bibliográfica:
COMPAGNON, Antonie. O demônio da teoria. Belo Horizonte: UFMG,2003
BAUDELAIRE, Charles. In Obras Completas. O Pintor da Vida Moderna.
BAUDELAIRE, Charles. In Obras Completas. O Pintor da Vida Moderna.
Por Verônica J. S. de Góes DRE 107369278 - Teoria Literária III
Verônica, seu texto está excelente, muito bom mesmo. A todo momento se mostra o quanto você está atenta aos aspectos tanto teóricos quanto práticos da relação entre a literatura, os livros, o homem, o mundo, a sociedade, a cultura etc. Além disso, você escreve bem, tem estilo e pensamento próprios. Formidável, parabéns. Boas férias e um grande abraço.
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