segunda-feira, 29 de junho de 2009

Paisagem, Baudelaire, Adorno, Sociedade.

PAISAGEM

Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos
E, junto aos campanários, escutar sonhando
Solenes cânticos que o vento vai levando.
As mãos sob meu queixo, só, na água-furtada,
Verei a fábrica em azáfama engolfada;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E os vastos céus a recordar a eternidade.

É doce ver, em meio à bruma que nos vela,
Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão galgar o firmamento
E a lua derramar seu tíbio encantamento.
Verei a primavera, o estio, o outono; e quando,
Com seu lençol de neve, o inverno for chegando,
Cada postigo fecharei com férreos elos
Para na noite erguer meus mágicos castelos.
Hei de sonhar então com azulados astros,
Jardins onde a água chora em meio aos alabastros,
Beijos, aves que cantam de anhã e à tarde,
E tudo o que no Idílio de infantil se guarde.
O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça,
Não me fará mover a fronte ao que se passa,
Pois que estarei entregue ao voluptuoso alent
De relembrar a Primavera em pensamento
E um sol na alma colher, tal como quem, absorto,
Entre as idéias goza um tepido conforto.


Seria possível estabelecer uma relação entre a poesia Paisagem, de Charles Baudelaire, e a sociedade, nos moldes do que é proposto por Adorno em Palestra sobre lírica e sociedade?

Logo no início do poema de Baudelaire, o eu-lírico mostra o desejo que sente de para compor suas éclogas (aqui traduzidas por castos monólogos), deitar-se ao pé do céu para escutar sonhando/ Solenes cânticos que o vento vai levando. Já nesses primeiros versos fica claro o desejo que possui o eu-lírico de refugiar-se no sonho, desejo que será reiterado no decorrer da poesia.

Nos versos seguintes, o eu-lírico diz que quando estiver sozinho na água-furtada verá a fábrica em azáfama engolfada, torres e chaminés, ou seja, o eu-lírico verá uma paisagem urbana, agitada, mas verá também, como é acrescentado no último verso dessa primeira estrofe, o vasto céu que faz sonhar a eternidade.

Nessa primeira estrofe pode-se ver uma contraposição entre elementos naturais como o céu, o vento, e outros elementos considerados urbanos, como a fábrica, as torres e as chaminés, entre a própria intenção do eu-lírico de compor uma poesia pastoril, ligada, portanto, ao campo, e a paisagem urbana que o cerca, assim como há também uma oposição entre o desejo, o sonho a que o eu-lírico aspira, e a realidade em que este se encontra.

Nos quatro versos que se seguem, os quatro versos iniciais da segunda estrofe, pode-se novamente ver uma contraposição entre elementos naturais e elementos urbanos, respectivamente a estrela que surge no azul e a lâmpada que surge a janela, a lua que derrama seu suave encantamento e os rios de carvão (fumaça) que galgam o firmamento.

O eu-lírico então verá a primavera, o verão, o outono, ou seja, o tempo passará, e quando o inverno, o tempo de recolhimento, estiver chegando, fechará cada postigo (não os postigos, não alguns postigos, mas cada postigo) com férreos elos (elos fortes, resistentes, inquebráveis). Apesar de a tradução não ser literal, mantém-se o mesmo sentido no francês onde é dito que fechará por toda a parte portinholas e postigos. Poderia imaginar-se que tal cuidado tivesse a intenção de protegê-lo do frio, mas é dito então que tal recolhimento, tal isolamento do exterior tem como objetivo poder na noite erguer meus mágicos castelos. É estabelecida aqui a relação entre isolamento e devaneio, e a preocupação que tem em fechar portas e janelas deixa o pressuposto de que há algo lá fora que o impediria de sonhar. Nos versos que se seguem o eu-lírico enumera todas as coisas com que sonhará quando estiver em tal isolamento, azulados astros, jardins com alabastros, beijos, aves e tudo o que no Idílio de infantil se guarde.

E nesse isolamento em que se encontra o eu-lírico, o que acontece do lado de fora da janela não lhe chamará a atenção, e ele sequer voltará o rosto para olhar quando o Tumulto golpear sua vidraça. Chama a atenção nesses versos o Tumulto que, representado com letra maiúscula, é tornado absoluto como uma força que se oporia ao Idílio, também elevado, através da maiúscula, ao status de potência absoluta. E o Tumulto, enfim, não poderá chamar a atenção do eu-lírico porque este estará entregue ao alento de relembrar a primavera em pensamento, absorto, gozando um tépido conforto entre as idéias.

A paisagem do título pode, portanto, ser tanto essa paisagem urbana tumultuada, caótica, que representa uma realidade desoladora da qual o eu-lírico deseja isolar-se e fugir, como também essa paisagem natural perdida, idílica, que representa o sonho, o devaneio no qual o eu-lírico deseja refugiar-se.

Como se poderia então, de acordo com o que propõe Adorno em seu ensaio, relacionar essa poesia de Baudelaire com a sociedade?

Primeiramente, ela é a expressão, como toda a lírica, de um eu-lírico e de seus desejos e tal valorização da subjetividade já é em si social, pois toda a idéia de individualidade está intrinsecamente ligada à burguesia e seu modo de vida.
Em seguida, pode-se relacionar tal poesia com a sociedade historicamente, posto que essa paisagem que vê o eu-lírico de sua água-furtada, as torres, as chaminés etc. situam a poesia tanto no tempo (na modernidade), quanto no espaço (espaço urbano, uma grande cidade), o que torna essa paisagem algo que é, muito além do individual, na verdade dividido com milhões de outras pessoas. A própria nostalgia que sente o eu-lírico em relação ao campo, à natureza, ao mergulhar em si mesmo, é também histórica e, portanto, social.

Pode-se ainda ver nessa poesia, através do desejo que tem o eu-lírico de refugiar-se no sonho, o sofrimento que lhe causa a realidade, a brutalidade de sua existência. Aliás, a própria apresentação do Idílio e do Tumulto como valores antitéticos, sendo o primeiro positivo e o segundo negativo, já é em si um posicionamento social, posto que, segundo Adorno, também a resistência contra a pressão social não é nada de absolutamente individual; nessa resistência agem artisticamente, através do indivíduo e de sua espontaneidade, as forças objetivas que impelem para além de uma situação social limitada e limitante, na direção de uma situação social digna do homem; forças, portanto, que fazem parte de uma constituição do todo, não meramente da individualidade inflexível, que se opõe cegamente à sociedade.

Finalmente, levando-se em conta as palavras de Adorno, de que a abissal beleza de determinados versos de Goethe seria inseparável daquilo que eles calam, e o direcionamento de toda a sua palestra, pode-se considerar que o aspecto que mais diretamente se relaciona com a sociedade, o que de mais importante há nessa poesia de Baudelaire, talvez seja a pergunta cuja resposta não é dada no poema, mas apenas insinuada, sugerida: que sociedade é essa que faz com que o eu-lírico prefira à sua convivência, a solidão e o refúgio no devaneio?

Bibliografia

BAUDELAIRE, Charles; As Flores do Mal, Editora Nova Fronteira
ADORNO, Theodor W.; Notas de Literatura, Editora 34

Por:
Kim Albano de Barros DRE: 106043015
Alex Sander Lopa de Carvalho DRE: 105073910

Um comentário:

  1. Kim e Alex, bom trabalho, bem escrito e com a articulação de ideias claras. Gostei do desenvolvimento do texto. Como sugestão, lembrem-se de sempre citarem o tradutor do poema analisado, pois, como vocês mesmos observaram no decorrer do texto, a tradução pode não contemplar determinados aspectos importantes na análise feita.

    Um abraço e boas férias. As notas seguem após a leitura completa dos trabalhos.

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.