quarta-feira, 17 de junho de 2009

A piedade de Satanás

Les Litanies de Satan

Ô toi, le plus savant et le plus beau des Anges,
Dieu trahi par le sort et privé de louanges,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Ô Prince de l'exil, à qui l'on a fait tort
Et qui, vaincu, toujours te redresses plus fort,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui sais tout, grand roi des choses souterraines,
Guérisseur familier des angoisses humaines,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui, même aux lépreux, aux parias maudits,
Enseignes par l'amour le goût du Paradis,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Ô toi qui de la Mort, ta vieille et forte amante,
Engendras l'Espérance, — une folle charmante!

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui fais au proscrit ce regard calme et haut
Qui damne tout un peuple autour d'un échafaud.

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui sais en quels coins des terres envieuses
Le Dieu jaloux cacha les pierres précieuses,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi dont l'oeil clair connaît les profonds arsenaux
Où dort enseveli le peuple des métaux,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi dont la large main cache les précipices
Au somnambule errant au bord des édifices,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui, magiquement, assouplis les vieux os
De l'ivrogne attardé foulé par les chevaux,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui, pour consoler l'homme frêle qui souffre,
Nous appris à mêler le salpêtre et le soufre,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui poses ta marque, ô complice subtil,
Sur le front du Crésus impitoyable et vil,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Toi qui mets dans les yeux et dans le coeur des filles
Le culte de la plaie et l'amour des guenilles,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Bâton des exilés, lampe des inventeurs,
Confesseur des pendus et des conspirateurs,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Père adoptif de ceux qu'en sa noire colère
Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Prière

Gloire et louange à toi, Satan, dans les hauteurs
Du Ciel, où tu régnas, et dans les profondeurs
De l'Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!
Fais que mon âme un jour, sous l'Arbre de Science,
Près de toi se repose, à l'heure où sur ton front
Comme un Temple nouveau ses rameaux s'épandront!

— Charles Baudelaire



Nenhum outro poema definiria Charles Baudelaire com a propriedade que as “As litanias de Satã” o fez. Ao invocar o arquétipo mais temido e evitado do imaginário humano, ao inverter seu valor e qualificá-lo originalmente, Baudelaire, se ainda não conseguiu, consegue nesse momento perfurar dolorosamente os olhos leitores mais hipócritas e moralistas.

A figura do satanás resume tudo o que é temido e evitado. Sua imagem está imbuída nos prostíbulos e nas casas de ópio; na ganância e na usura; nos corações assassinos e impiedosos; na prisão e na liberdade. O demônio é o ser negro; relacionado ao fétido, ao vil, ao feio, ao desagradável e incômodo. Tudo que esperaríamos ler sobre essa figura seria de ordem prejudicial e defeituosa. E então nos depararmos com “As litanias de Satã” e nos chocamos com a profunda inversão de valor proposta pelo autor. A “invocação”, quase como uma conversa familiar com o demônio, convida-nos para uma realidade onde os parâmetros e paradigmas da uma sociedade preconceituosa e moralista não são bem vindos.

Estamos diante da quebra dos preceitos, dos valores culturais, da mediocridade e limitação mental. Aqui o que se faz é o que em uma mente retrógrada nunca poderia ser feito: tornar o feio em bonito, o ignorante em inteligente, o bastardo em irmão legítimo, o inferno em céu, o preto em branco, o longe em perto, o demônio em anjo. Aqui o se faz é arte, pura arte! E quanto a isso, Baudelaire é perito.

Portanto, antes de tudo, para deixarmos esclarecido o objetivo desta breve leitura proposta, não estamos interessados em um suposto envolvimento religioso entre o autor e a entidade de Satã propriamente dita, como muitos forçam tal interpretação ao ápice da fatiga. Isso realmente não importa. O que nos interessa, de fato, é a arte produzida; e essa é inegável no poema. Satanás e Deus serão aqui vistos como símbolos. Deus, símbolo da moral, dos preconceitos e paradigmas, e Satanás, símbolo de tudo aquilo que é evitado pela sociedade de Deus.

Retiramos o verso principal e mais quatro dísticos do poema para tecermos breves comentários, visto que não se faz necessário maiores explicações de um poema que já fala por si só, tornando-se inútil e pretensioso qualquer esclarecimento demasiadamente prolixo.

Ô toi, le plus savant et le plus beau des Anges,
Dieu trahi par le sort et privé de louanges,

O poema começa invocando o satanás por suas qualidades. Já nos primeiros versos, Baudelaire deixa claro o que virá pela frente: A inversão de valores. O satanás assume posição sublime, e Deus posição maquiavélica. O satanás é apresentado como o injustiçado por Deus. Os versos Alexandrinos primários com dois pés de seis sílabas e as rimas emparelhadas seguindo o esquema aa/bb/cc/dd etc. tornam a leitura do poema mais musical, conduzindo-nos a um estado de hipnose e extremo envolvimento. E Segue:

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

Esse verso é mais impactante do poema, tanto pela repetição, que nos leva a um estado de êxtase (repete-se 15 vezes a cada dois dísticos), quanto pelo seu conteúdo. O autor pede piedade ao satanás como se estivesse pedindo perdão e auxílio. Só ele de fato poderá nos acolher e nos salvar da miséria que Deus nos destina e nos limita. É válido notar certa ironia do autor ao escrevê-lo, pois sua estrutura, ao passo que segue o modelo das ladainhas católicas, difere-se tanto pela entidade invocada quanto pelo uso do pronome possessivo “ma”, ao invés do uso que seria mais apropriado ao catolicismo, pronome “notre”, sugerindo assim um individualismo e não um coletivismo.

Toi qui, même aux lépreux, aux parias maudits,
Enseignes par l'amour le goût du Paradis,
(...)

Toi qui fais au proscrit ce regard calme et haut
Qui damne tout un peuple autour d'un échafaud.

Satanás aqui é visto como o verdadeiro misericordioso. O uso do “même” em “même aux lépreux (...)” sugere que somente ele é capaz de acolher, através de sua grande compaixão, esses seres rejeitados por Deus e levá-los ao prazer que jamais poderiam alcançar dentro do sistema. É interessante levar em conta também a época do autor, em que doenças como a Lepra eram abominadas, e todos aqueles que as contraiam eram postos impiedosamente às margens da sociedade, mesmos pelos mais religiosos. Nada mais provocador que citar os leprosos, tendo em vista que umas das tônicas da obra baudelairiana é a crítica a hipocrisia da sociedade de Deus. Mais uma vez nos deparamos com a adjetivação sublime em “regard calme et haut”, tornando Satanás cada vez mais próximo à posição de Deus.

Père adoptif de ceux qu'en sa noire colère
Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père

Tratando Satanás como o pai adotivo, Baudelaire sugere uma filiação paterna legítima forçada, visto que, segundo o pensamento católico, somos todos filhos de Deus, mesmo sem o nosso consentimento. Já a filiação não consangüínea com Satanás seria de nosso inteiro consentimento e vontade. No segundo verso, o autor explicita mais uma vez a maldade e a cólera de Deus contra o Satanás ao expulsá-lo da terra, provavelmente por inveja, visto que Satanás, ou Lúcifer, como seu nome já diz, é o verdadeiro iluminado.

E é com esse espírito profundamente perturbador e inovador que Charles Baudelaire compõe sua obra. Um presente para a humanidade de um mestre da literatura mundial.

Bibliografia:
Les Fleur Du mal, Charles Baudelaire. The New Translation by Richard Howard.
http://www.scribd.com/doc/6721464/Flavio-Quintale-Neto-O-DiaboDeus-de-Baudelaire


Aluno: Bruno Tenório. 108057701. Teoria Literária 3.

Um comentário:

  1. Olá Bruno. Seu trabalho está muito bem escrito, e o poema foi bem escolhido também. Ainda que não tenha mencionado nenhuma "teoria", pode-se dizer que seu trabalho tem um olhar teórico e crítico sobre o poema baudelaireano. Você poderia ter traduzido os trechos comentados, isso daria força ao trabalho. E poderia, do mesmo modo, ter citado alguma das abordagens que vimos durante o período, tudo isso teria enriquecido sua análise. De todo modo, creio que você mostrou maturidade em seu trabalho. Muito bom. As notas seguirão por email após a leitura de todos os trabalhos. Abraços e boas férias.

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